O Papel dos Médicos na Violência Doméstica - Sigilo VS Denuncia

Transcrição da Entrevista:

Uma investigação realizada pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, sobre as consequências da violência nas relações de intimidade para a saúde física e psicológica das vítimas, demonstrou que os médicos podem ter um papel determinante na qualidade de vida das vítimas de violência doméstica. No entanto, este estudo demonstra que ainda há um grande caminho a percorrer na preparação dos profissionais de saúde para este tema.

Por isso, para tentar perceber o que se passa e o que pode ser melhorado, temos connosco gestora do gabinete de apoio à vítima de Braga, Marta Mendes, em representação da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, para podermos ouvir quem está na linha da frente. A APAV tem como missão apoiar as vítimas de crime, as suas famílias e amigos, prestando-lhes serviços de qualidade, gratuitos e confidenciais, sendo que no ano de 2022 apoiou perto de 15 mil vítimas diretas de crimes.

Antes de mais, queria agradecer, Marta, por aceitar o nosso convite. Passando então às questões:

Inês (Porta Nova): 1. Esta investigação, demonstrou que apenas 2% dos casos de violência doméstica que chegam aos hospitais são registados e denunciados pelos médicos, sendo que 18% das mulheres em Portugal são vítimas de violência doméstica. Acha que isto acontece pelos médicos terem receio de invadir a privacidade e a confidência da utente?

Marta (APAV): Muito obrigada, obrigada pelo convite em nome da APAV, do Gabinete de Apoio à Vítima de Braga. Do que me pergunta, e se calhar dando um passo atrás, eu queria e quero deixar muito claro a importância dos profissionais de saúde nesta deteção, no combate a este flagelo que é efetivamente o crime de violência doméstica ou o que são as situações de vitimização. Hoje vamos aqui muito provavelmente orientar-nos por um crime que é um crime contra as pessoas, o crime de violência doméstica, um crime de natureza publica. Também acho que a entrevista nos levará  discutir este assunto, mas acima de tudo deixar uma palavra também a todos os médicos e enfermeiros, a todos os profissionais de saúde, da importância que os mesmos têm neste rastreio, detenção, avaliação, diagnóstico, registo e sinalização e encaminhamento das situações de vitimização. Posto isto, e no que me faz a pergunta diretamente, os prestadores de saúde devem efetivamente de forma sistemática proceder à deteção do risco de violência domestica, assegurar em todos os processos de triagem que são colocadas questões muito objetivas sobre a existência ou não de violência no seio da família, só com estes registos, estes registos que devem estar em conformidade com todos os referenciais técnicos da DGS relacionados com a violência interpessoal, abordagem, diagnóstico e intervenção dos serviços de saúde incluindo a consulta do registo clinico da violência em adultos, o guia prático que existe, publicado por esta mesma entidade, acredito que conseguimos aqui este rastreio, esta deteção e a devida avaliação. E depois, um importante patamar é efetivamente os profissionais de saúde, para além desta deteção e avaliação que possam fazer, devem documentar estas declarações dos utentes e das utentes sobre a violência a que possam estar sujeitos e as diversas ocorrências que neste domínio detetem no exercício e pelo exercício das suas funções. Sempre que existe esta suspeita, fundada, ou a confirmação de violência doméstica, estes profissionais de saúde devem fornecer a estas pessoas, vítimas de violência, a informação existente sobre os recursos de apoio à vítima, já existe um guia de recursos na área da violência domestica disponível, para que também os profissionais possam saber as entidades que naquela área fornecem estes serviços e diligenciar, se houver caso disso, pelas medidas de segurança  necessárias bem como se for piamente, e vamos lá chegar com certeza ao longo desta entrevista, relatar as situações à entidades judiciárias competentes.

Inês (Porta Nova): 2. A verdade é que a lei e o Código Deontológico afirmam que os médicos, e passo a citar, “em situações de maus-tratos que ponham em causa, de forma grave, a saúde, integridade física ou a própria vida das vítimas devem ser identificadas”. Diria que ao não fazer esta denuncia, é uma forma de mau cumprimento de função enquanto médicos?

Marta (APAV): Bom, essa pergunta é muito difícil para uma pessoa que não é médica e que não domina se calhar tão suficientemente bem conforme o disse, o código deontológico, agora eu sou jurista e o que posso dizer à cerca desta obrigatoriedade denuncia vs sigilo profissional, conforme outras profissões também o têm, é importante percebermos desde logo que em alguns momentos da nossa profissão temos esta obrigatoriedade de denuncia é sublime, suplante a questão do nosso sigilo profissional. A questão é saber quanto temos a obrigatoriedade de denuncia e cada caso é um caso, cada urgência é uma urgência, muitas vezes vocês tem a urgência médica e as demais urgências de proteção, de avaliar esta questão do sigilo vs obrigatoriedade, se é que me é possível dar aqui algumas dicas, o nosso ordenamento jurídico-penal é muito claro dizendo que os funcionários públicos sempre que tenham conhecimento do exercício dos suas funções e por causa delas de uma situação de vitimização devem denunciar. Este é assim a questão máxima da obrigatoriedade de denuncia dos funcionários públicos, agora depois temos que perceber este cumprimento do dever de denunciar caso a caso e então o que é que importa ter em consideração? Só existe aqui o dever de denuncia quando o funcionário ou a funcionaria, ou o profissional tem informações consistentes e credíveis que o facto tenha sido efetivamente praticado não bastando aqui uma suspeita, rumor ou suspeita vaga. O momento da apresentação de denuncia deve ser preparado atendendo à necessidade de assegurar a proteção e a devida segurança da vítima, dos seus familiares, mas também de procurar a sua adesão. É importante percebermos sendo um crime publico não raras vezes a vitima é a principal testemunha e o principal meio de prova é a prova documental, ou seja, apesar de às vezes termos urgência é importante que esta urgência também espeite, acima de tudo, esta vontade da vítima. Algumas vezes poderemos não conseguir esta adesão e é aí que temos que efetivamente ponderar a decisão de denuncia, esta pode ser antecedida deste momento de recolha de informação, que já poderão ter feito na triagem no diagnóstico, comprove ser suficientemente o seu fundamento, ou seja, se há ou não já indícios claros de que aquilo tenha realmente acontecido,  de apoio, esclarecimento da vítima e de mobilização da rede de suporte das vítimas de violência de doméstica. Ou seja, se é que me é possível, e n´so aqui teríamos que ver caso a caso, e vocês melhor que ninguém caso a caso avaliar, é importante percebermos isto: há dever de denunciar? Sim, procurar ao máximo a adesão, às vezes não há a urgência e podemos mobilizar toda a rede de suporte, vocês têm aqui entidades que trabalham na saúde para encaminharem, sinalizarem, falo das EPVAs, das equipas de prevenção das vitimas de adultos, e vocês podem e devem encaminhar internamente para estas situações para outros profissionais, para estas equipas multidisciplinares que não raras vezes conhecem muto bem a rede de apoio às vitimas de violência domestica e diariamente contactam com por exemplo a APAV ou outros serviços de apoio. Ou seja, não conseguindo ter esta noção da avaliação de risco total de também se esta suspeita é uma verdadeira suspeita se conseguem ter os elementos não conseguindo a adesão, acho que obrigatoriamente devem sinalizar. Em alguns monumentos, terão que fazer valer a obrigatoriedade de denuncia porque está um risco eminente de morte, um risco eminente de proteção e segurança àquela determinada pessoa vitima de violência domestica.

Inês (Porta Nova): 3. A realidade é que muitas vezes, também pela falta de condições ou falta de tempo disponível para consulta, o médico pode não conseguir ter o tempo necessário para ouvir e tratar uma mulher que apresente estes ferimentos. O que poderia ser melhorado, o que pensa que poderia ser melhorado, a nível hospitalar e de apoio à vítima, para este tipo de situações não aconteçam?

Marta (APAV): Uma vez mais não tenho uma solução, antes tivesse. Primeiro não sei se serei a pessoas mais competente para vos dar aqui uma total reposta e uma total orientação. A nível hospitalar, eu não trabalho nesse meio, não sou profissional de saúde, contacto com muitos, e do que ouço dos profissionais é muito esta necessidade de melhor compreenderem ou criarem verdadeiros caminhos, procedimentos, que às vezes não existem, ou não são tão claros ou tão divulgados, com vista a melhor elucidar estes profissionais de saúde, no rastreio, na deteção, na avaliação e diagnóstico, e a até nos mecanismos de proteção aos próprios quando estes tem que efetivamente que invocar uma obrigatoriedade de denuncia. Para isso, a meu ver, e cada vez mais o temos feito com os profissionais de saúde, a importância de capacitar os profissionais de saúde para melhor compreenderem o fenómeno da violência domestica mas também melhor averiguarem o risco destas vitimas de violência doméstica. Para quê? Para em última análise, conseguirem melhor compreender se têm ou não que invocar este dever de denuncia ou se têm algum tempo de gerir e procurar a adesão da vítima, encaminhando, referenciando para a rede não só interna, as vossas equipas, mas para as redes de suporte para as vitimas de violência domestica. E depois, como eu acho que isto, nós temos que nos conhecer, se a nível hospitalar podem e todos nós podemos melhor, nós no apoio à vitima também, se calhar, devemos muito procurar esta melhoria continua de melhor sabermos articular convosco, melhor vos compreender, eu acho que uma rede para funcionar tem que ter verdadeiras parecerias, verdadeiras pontes, e às vezes também nós do apoio à vitima temos que procurar que essas pontes se estabeleçam, se construam, de forma fortificada, de forma que haja um melhor apoio às vitimas de crime, aos familiares e amigos, mas também a estes profissionais, que não raras vezes, estão expostos a estas situações, e não raras vezes têm receios, medos, porque efetivamente e aqui estamos, muitas vezes, a falar da nível hospitalar, mas também temos aqui os centros de saúde que não raras vezes atendem a vítima, a pessoa agressora, os filhos, as filhas, e estão ali no meio da situação de violência e nem quero imaginar o quão difícil é para estes médicos e médias de família, para estes profissionais que trabalham diariamente com o agregado familiar vítima-agressor, conseguirem tomar esta decisão e o risco inerente. E dizer que nós, apoio à vítima, temos cada vez mais, e acho que estamos prontos para vos ajudar no que nos é possível no sentido de melhor elucidar estas pessoas dos seus direitos e procurarmos vias cada vez mais de proteção e de gestão deste risco.

Inês (Porta Nova): 4. O estudo revelou ainda que mulheres vítimas de violência doméstica têm maior predisposição para desenvolverem vários tipos de doenças. Por exemplo, têm o triplo de episódios de AVC, ocorrência de diabetes tipo 2, infeções sexualmente transmissíveis, até cancro, entre outras. No fundo por estarem expostas a uma grande quantidade de stress, e por isso também se pode associar a perturbação de stress pós-traumático a estas mesmas pessoas. Sendo algo que marca não apenas fisicamente e psicologicamente, mas também a longo prazo a saúde da vítima, o que podem os médicos fazer para melhorar a saúde destas mulheres? No fundo estou a perguntar, na sua opinião, do que costuma ver e que costuma lidar, o que é que os médicos poderiam fazer para melhorar esta situação?

Marta (APAV): Acho que temos de procurar melhor saber trabalhar em rede. Nós sabemos que a violência doméstica, não raras vezes as situações que acompanhamos de violência doméstica são situações de vitimação continuada. O que, infelizmente, e não conheço de forma tão próxima o estudo que revelou, mas parece-me que quanto mais tempo decorrer numa situação violenta maior poderá será o impacto que traz consequências negativas para a vida não só da vítima, mas também dos seus familiares e, não raras vezes, também dos seus amigos. Temos ainda de compreender que nas situações de violência doméstica há uma especial relação que une a vítima à pessoa agressora. E daí, é importante, todos juntos, em rede, os profissionais de saúde e os técnicos de apoio à vítima, percebermos que a intensidade deste impacto e o modo como este se manifesta é uma questão muito própria de cada pessoa e que pode ser influenciada por uma série de fatores, já falamos aqui de alguns, mas há muitos mais. Se todos trabalharmos em rede, melhor compreendendo a situação, apoiando-nos mutuamente pra que aquela pessoa possa, se for o seu objetivo, sair do contexto violento com toda a proteção necessária é meio caminho andado para evitar um impacto mais duradouro que traga essas consequências negativas, ou outras. Eu sou uma defensora de que o trabalho em rede poderá ajudar-nos em muito a diminuir muitos destes sintomas que as vítimas de violência doméstica sofrem.

Inês (Porta Nova): 5. E também devido a esta maior prevalência de stress pós-traumático, o estudo revelou que 87,5% das mulheres vítimas de violência doméstica consomem medicação antidepressiva e ansiolítica. Qual a repercussão destes tratamentos na vida destas mulheres a longo prazo? E, no fundo, também queríamos saber se existem programas de apoio à saúde mental das vítimas que sejam suficientes, ou se era preciso algo mais.

Marta (APAV): Aqui traz-nos uma questão que para nós é muito querida e que, ao mesmo tempo, é uma questão muito sofrida, se é que o posso dizer e já o vou tentar melhor explicar. Não raras vezes nós, serviços de apoio, prestamos apoio gratuito e confidencial desde o apoio emocional, psicológico, jurídico, encaminhamento social e o apoio prático, vamos notando ao longo dos tempos que as vitimas carecem nomeadamente de encaminhamento urgente para serviços de psiquiatria e a dificuldade que é conseguirmos fazer isto? Muitas vezes articulamos com as equipas de prevenção, as EPVAs, articulamos com os serviços de urgência no sentido de melhor compreendermos, mas depois parece que temos as barreiras das proteções de dados que inviabilizam uma boa proteção à vítima e uma boa passagem de informação – eu não sou da área de psicologia, como já disse, sou da área de direito, mas tenho aqui a função de gestora, de tentar ao máximo que os processos fluam e fluam num sentido de maior proteção à vítima, mas que também de que ela tenha uma melhor saúde, melhor desenvolvimento. E temos esta dificuldade, às vezes não conseguimos passar informação, e informação que foi recolhida durante muitos atendimentos psicológicos e que achamos que deveria ser passada ao médico ou assistente que está a acompanhar aquela pessoa. E se já um longo caminho tem sido percorrido e se há cada vez uma melhor comunicação, a verdade é que às vezes há muito ruído, muitas portas em que temos de bater, às vezes temos de acompanhar a vítima para perceber e explicar ao médico/a o que é que nós apreendemos. Mas também há casos de sucesso, onde os serviços de apoio à vítima se sentam com a assistente social, com um médico/a, no sentido de todos nós compreendermos não só o que estamos a fazer, mas também as nossas limitações até melhor compreendermos a sintomatologia daquela pessoa, a forma como está a evoluir ou que evolução é expectável e percebermos que solução poderíamos todos juntos encontrar. Ou seja, acho que um bom caminho está a ser percorrido. Há dificuldades ainda? Há, mas é possível ultrapassa-las com a capacitação mútua e com o arranjar verdadeiras pontes que fluam a comunicação e que nos permitam ao máximo, nem que tenhamos uma pessoa de referência em cada serviço que articule e melhor possibilite este que vocês falaram, ou seja um melhor apoio à saúde mental da vítima de crime.           

Inês (Porta Nova): 6. Para terminar a entrevista, o ditado “entre marido e mulher não se mete a colher” ainda é muito utilizado, como devemos, não só enquanto médicos ou profissionais de saúde, mas como cidadãos, quebrar esta ideologia?

Marta (APAV): Desde logo acabar com o mito, não é?  Desde logo acabar com o mito e perceber que esse mito devia-se tirar o “não” e dizer “entre marido e mulher meta-se a colher”, desculpem o termo, mas acabar de uma vez por todas. E se calhar começar pelas nossas crianças, pelos nossos jovens, pelos nossos profissionais de saúde e percebermos que esta prevenção e sensibilização que devia começar em tenra idade, se deve dar em todo o nosso crescer, em todo o nosso percurso académico e depois, enquanto profissionais, capacitarmo-nos, melhor compreendermos as situações, melhor saber como fazer diariamente o nosso trabalho, não ignorando o fenómeno. Ou seja, compreender que é uma realidade que não estou a ver que desapareça a curto, médio ou longo prazo, infelizmente, percebermos a importância de todos nós enquanto comunidade de darmos uma verdadeira resposta, não só na compreensão do fenómeno, mas também no combate a este enorme flagelo. Percebermos que este flagelo tem consequências enormes em todos nós enquanto sociedade, não é só para as vítimas, nem só para os familiares nem amigos, mas é para todos nós, consequências económicas, sociais e todos nós podemos fazer o nosso papel, mas para isso precisamos de compreender o fenómeno. Por isso, o que eu queria também vos dizer é que para nós acabarmos com os mitos temos de aumentar a nossa prevenção e a nossa sensibilização, mas também a nossa capacitação enquanto profissionais. No que precisarem a APAV está totalmente disponível. Não se está é a solução, mas acredito que esta seja uma parte da solução. E entrevistas como estas, ou seja, que levam-nos a fazer chegar a vocês, profissionais, não só a enorme importância que têm nesta deteção, nesta avaliação, neste diagnóstico, mas acima de tudo saberem que existem serviços, inclusive no vosso concelho, mas se estão a residir ou a trabalhar num outro concelho, existem guias que dizem os serviços de apoio certificados que existem naquele determinado concelho, para que possam encaminhar e referenciar as pessoas vítimas de crime e, acima de tudo, para que elas, até antes da queixa, se sintam apoiadas e compreendam os seus direitos e que depois o apoio se mantenha ao longo de todo o processo de crime, não podemos nos deixar iludir que o processo termina aquando da queixa ou denuncia, mentira, o processo começa. E começa um processo que pode ser longo e o impacto desse processo pode acarretar para a vítima. Percebemos que, não raras vezes, que vocês, profissionais de saúde, podem estar no inicio do processo, mas que é importante perceberem que é longo e que todos nós temos de apoiar e estar lá, elucidar a pessoa e, se a pessoa assim o desejar, como é lógico, mas acima de tudo, melhor se encaminhar o processo para aquilo que se quer, que é a descoberta da verdade.        

Inês (Porta Nova): A verdade é que todos somos porteiros sociais e para podermos realmente ajudar e contribuir é preciso conhecermos e sermos informados para conseguirmos realmente ajudar quem precisa. Muita obrigada pela sua disponibilidade para esta entrevista e espero que os ouvintes também gostem, porque realmente foi muito importante.

Marta (APAV): Obrigada.

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